Recomendo a leitura do artigo “Lei Pagamentos por Serviços Ambientais do Acre beneficia Mercado Financeiro“ uma análise didática e crítico-analítica de uma das primeiras legislações na federação brasileira, a do Estado do Acre, no âmbito da Economia Verde.
Uma visão da economista Amyra complementada pelo historiador Soffiati, com base em farta documentação e de leitura agradável. Artigo recém publicado no PRAVDA.
Trata do tema Serviços Ambientais e do Mercado sob o prisma da contra-corrente à corrida já disparada pelos governos em suas 3 esferas, pelos bancos não apenas os multilaterais, pelas ongs, por federações e sindicatos , por comunidades e pelos intermediários rumo aos lucros que poderão advir através da precificação e da mercantilização da natureza.
Muito embora, numa civilização materialista aonde grande parte da população é urbana e já está desvinculada por gerações do ambiente natural, seja difícil conceber a proteção da natureza de forma espontânea: num conceito panteístico ou minimamente pelo amor a ela, por consideração aos descendentes e muito menos por respeito ao direito à vida das florestas, das águas e doutros elementos.
Léa Corrêa Pinto
2162- PRAVDA.RU: Lei SISA do ACRE
Aliança RECOs Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras |
Com destaque na Capa do PRAVDA.RU em Português, edição de 06/09/2012
Parabéns para Amyra + Soffiati ! Armando Rozario
Correio @pravda.ru Ciências
http://port.pravda.ru/science/06-09-2012/33672-servicos_ambientais-0/
Lei Pagamentos por Serviços Ambientais do Acre beneficia Mercado Financeiro
06.09.2012
POR AMYRA EL KHALILI* E ARTHUR SOFFIATI**
A Lei nº. 2.308, de 22 de outubro de 2010, do Estado do Acre, que cria o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA), o Programa de Incentivos por Serviços Ambientais (ISA), Carbono e demais Programas de Serviços Ambientais e Produtos Ecossistêmicos[1] parece já manifestação da economia verde, antes que este conceito fosse badalado na Rio+20. Se o trabalho dos polinizadores pode ser valorado e precificado, quem receberá o dinheiro por eles, já que a natureza trabalha sem ter noção do que é trabalho e do que é remuneração? Alguém pode receber por eles. Quem será? Isto facilita muito a entrada de grandes empresários e grupos para receber por aquilo que a natureza faz de graça, queiramos ou não queiramos. O urubu trabalha diariamente durante o dia, seja sábado, domingo ou feriado. Ele age assim porque é da sua natureza, não porque precisa de dinheiro. Contudo, alguém pode querer receber por este serviço gratuito, valorando-o e precificando-o.
A formação de preços (precificação) nos mercados de capitais, especificamente nos mercados bursáteis (bolsas de valores e de mercadorias). É determinado por três fatores: a análise fundamentalista, que é o estudo da conjuntura econômica; a análise matemática, que compreende os cálculos de taxas de juros, prazos e custos; e a análise gráfica, que registra as oscilações de oferta e demanda do objeto (ativo ou commodity). Portanto, a complexidade para a formação de preços exige profundo conhecimento do objeto.
Na escola neoliberal, para encurtar o caminho para a precificação, criaram-se os “índices” produzidos por universidades de grife e institutos de pesquisa, pagando régias mesadas a essas instituições para, com estes indicadores, viabilizar as decisões dos players (comprar e vender) e, assim, girar cada vez mais e mais rapidamente contratos nos mercados de futuros.
A indústria de futuros, chamada de derivativos (derivado de ativos), tornou-se muito lucrativa no curto prazo, principalmente para corretoras e bancos, uma vez que os agentes intermediários ganham no volume negociado a despeito do resultado, ou seja, ganham corretagem quando o cliente está ganhando e também quando o cliente está perdendo.
Com o tempo, já não interessava mais ganhar “corretagem” sobre operações de compra e venda para cada contrato negociado. O apetite pela especulação e a ganância sobre as vantagens de comprar e vender rápido, muitas vezes em segundos, criou oportunidades para que os agentes intermediários (brokers e traders) ganhassem também no jogo financeiro. Entenda-se: jogando com o trabalho produtivo e o dinheiro dos outros. Jamais com seu próprio dinheiro.
A indústria financeira aumentou desproporcionalmente a produção de bens e serviços reais e avançou com a desregulamentação, dando chances para se realizar lucros ou prejuízos sem que o próprio sistema de garantias pudesse suportar as liquidações com a concentração de poder nas mãos de apenas meia dúzia de bancos também avalistas de garantias para os negócios que os mesmos bancos ofertavam para seus clientes.
Em dezembro de 2007, o Banco de Compensação Internacional (conhecido pela sigla BIS, em inglês) estimou em US$ 681 trilhões os negócios com derivativos – dez vezes mais o PIB de todos os países do mundo combinados. É a raposa[2] tomando conta do galinheiro.
Se os autores desta Lei conhecem o funcionamento do mercado financeiro, não sabemos. O que sabemos é que o aparato conceitual utilizado por eles é antigo e pode nos levar a conclusões equivocadas. E exatamente eles, que sugerem ocupar postura pioneira. Usar o conceito de preservação de modo generalizado faz tábula rasa da natureza não-humana. Parece irrelevante nossa observação. No entanto, se os autores recorrerem ao artigo “Duas filosofias de proteção à natureza”, de Catherine Larrière, incluído no livro Filosofia e Natureza: Debates, Embates e Conexões, organizado por Antônio Carlos dos Santos (Aracaju: Editora da Universidade Federal de Sergipe, 2008), verificarão que os conceitos de conservação e de preservação são antigos e de fundamental importância para compreender as relações entre sociedades humanas (antropossociedades) e natureza não-humana.
Preservação significa manter íntegra a natureza não-humana. Conservação indica o uso da natureza não-humana respeitando seus limites. Em que sentido eles usam o conceito de preservação? Pelo visto, empregam-no como sinônimo de proteção, conceito que envolve preservação e conservação. Sugerimos sempre a nossos alunos e colegas: na dúvida, usar o conceito de proteção.
Entre os defensores da natureza não-humana mais simplórios e dos críticos do movimento ecologista e ambientalista, os conceitos de conservação e de preservação são entendidos como opostos e excludentes. Trata-se de uma falsa questão, pois preservação e conservação se complementam. Não se pode ser preservacionista numa cidade, tampouco conservacionista numa reserva biológica.
Eles também atribuem à Cúpula dos Povos[3], movimento paralelo à Rio+20, o uso inadequado da artilharia ideológica, chamando a atenção para a sua ideologia desinformada. Aqui, eles entram num terreno minado e muito perigoso, pois, por uma vertente de pensamento (Mannheim e Althusser, por exemplo), todo ser humano pensa de forma ideológica, enquanto que o marxismo clássico entende como ideologia o pensamento conservador. Daí dizer-se que a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. A qual dos dois sentidos de ideologia se referem? Do jeito que a expressão é usada, parece que eles estão fora das ideologias, enquanto que a Cúpula dos Povos é prisioneira de uma.
Os autores da Lei sustentam que o SISA busca a “compatibilização do desenvolvimento econômico e social com as melhores práticas de preservação ambiental”. Já examinamos o conceito de preservação. Compatibilização é uma postura que, segundo os ecologistas de boa estirpe, tenta conciliar desenvolvimento predatório, ou seja, crescimento econômico convencional com a proteção do ambiente. Historicamente, desde a década de 1970, os pensadores mais lúcidos sabem que tal conciliação é possível provisoriamente. Quando a corda a unir proteção do ambiente e desenvolvimento se rompe, o beneficiado é sempre o desenvolvimento. Mas existem concepções distintas de desenvolvimento. A qual delas seus autores se referem? A resposta a esta pergunta vem logo em todo o texto da Lei: desenvolvimento sustentável.
O conceito de desenvolvimento sustentável se afirmou nos anos de 1980, principalmente com o livro Nosso Futuro Comum, oriundo da Comissão Brundtland. Progressivamente, ele substituiu o conceito de ecodesenvolvimento, bem mais claro, e tornou-se central na Conferência Rio 92. Com o tempo, seu uso foi tão generalizado que perdeu o sentido. Hoje, fala-se de juros sustentáveis, lucro sustentável, renda sustentável, crescimento sustentável, práticas sustentáveis e até corpo sustentável sem o mínimo rigor conceitual. E seus autores rebatendo opiniões críticas à Lei SISA fazem o mesmo. As consequências de tal uso é o emprego de crescimento de renda e de PIB. Ora, a produção de armas de guerra e os serviços ligados a ela geram renda e contribuem para o aumento do PIB. Onde o pioneirismo destes autores em uso tão acrítico?
Falar em meio ambiente é redundância. Meio significa ambiente e ambiente significa meio. Ou falamos em meio ou em ambiente. Da mesma forma, discutir créditos de carbono é voltar ao passado ou não sair dele. O mercado de carbono não ataca a crise ambiental antrópica de frente, mas procura transformá-la em fonte de lucros. Mas o passado está também embutido no presente, assim como no futuro. Basta examinar o conceito de economia verde, tão propalado antes, durante de depois da Rio+20. Qual o seu conteúdo? Não se sabe ao certo. Só se sabe que ele já está sendo usado para que negociantes ganhem dinheiro com a natureza. Basta ver o livro A Economia Verde: Descubra as Oportunidades e os Desafios de uma Nova Era dos Negócios, de Joel Makower (São Paulo: Editora Gente, 2009). O conceito de economia verde abre caminho para a valoração do ar e da fotossíntese, por exemplo. Produtor e produto, prestador e serviço são colocados no mesmo saco.
Parece que caminhamos para uma nova escravidão, esta bem mais sutil. No sistema escravista, o escravo e os bens e serviços por ele gerados podiam ser valorados. Um escravo, mesmo de braços cruzados, tinha preço. Podia ser comprado e vendido, independentemente dos bens e serviços que produzisse. A nova escravidão se assemelha mais com o que o filósofo francês Étienne de La Boétie chamava de servidão voluntária. As plantas realizam a fotossíntese voluntariamente para existirem, não porque as obrigamos. Mas alguém pode se arvorar em cobrar por ela ou ganhar alguma concessão governamental para explorá-la. Paremos por aqui, pois a lista de explorações indevidas é longa.
Portanto a Lei SISA abre um precedente perigoso para a raposa tomar conta, recebendo muita grana para cuidar do galinheiro[4], pois permite a captação dos recursos e a administração pelo sistema financeiro através do mercado de carbono. Está na mídia sendo apregoada[5] como modelo de lei para o mundo. Enquanto o mercado de carbono vinagra na Europa[6] contaminada pela crise financeira de 2008, aqui, nestas paragens, prega-se o mercado de carbono como a salvação da lavoura.
Causa estranheza que os idealizadores Lei de Pagamento por Serviços Ambientais do Acre desconheçam os impactos da precificação de produtos agropecuários nos mercados de commodities internacionais, como o caso do cacau, açúcar, café, soja, milho e boi, entre outros. Fica a impressão de que não foram estudadas as regras básicas de precificação, constituídas das análises fundamentalistas (conjuntura econômica), matemática (juros, prazos e custos) e da análise gráfica (oferta e demanda).
Não se faz mercado artificialmente com leis e marketing ambiental. As experiências que tivemos nos mercados de commodities e derivativos nos ensinaram que a participação do Estado diretamente na regulação para fomentar a comercialização criou distorções e estimulou a especulação.
Quando o Banco Central regulava o câmbio no mercado de ouro, havia liquidez porque a autoridade monetária alimentava o mercado comprando e vendendo ouro. Quando o Banco Central saiu do ouro, o mercado de ouro evaporou. Não existia o mercado de câmbio futuro porque simplesmente não havia vendedores futuros de câmbio. Quando o banco estabeleceu o controle da moeda pela banda cambial, o mercado futuro de câmbio na antiga BM&F (BM&FBovespa) emergiu do zero e hoje é o mercado que sustenta, juntamente com o de taxa de juros, o impressionante movimento financeiro da BM&FBovespa.
Que o Estado faça seu papel de agente regulador e fiscalizador do sistema financeiro, que seja agente de fomento, mas que não se meta a fazer “mercado”. Se o Estado não consegue sequer fiscalizar a degradação e a devastação ambiental, como pode o mesmo Estado virar agente financeiro ou, na melhor das intenções, repassar para terceiros (a raposa) essa função?
Perguntem à BM&FBovespa: por que os mercados de commodities agropecuárias não avançam? Ou: por que os produtores rurais deste continente não operam na Bolsa de Futuros para se protegerem contra oscilações bruscas de preços das commodities agropecuárias? Perguntem aos players: por que o preço de soja nacional é definido pela Bolsa de Chicago e não por um preço formado com custo Brasil?
Façam mais perguntas antes de fazer leis para dar “valor” e/ou “valorizar” os bens ambientais. Perguntem aos árabes e africanos: por que a água (bem escasso no Oriente Médio e África) nunca foi cotada em Bolsas de Valores? Ou: por que os árabes e nordestinos não inventaram, ainda, o mercado futuro de água?
Também perguntem aos membros da Aliança RECOs (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras), que constroem um novo modelo econômico para América Latina e o Caribe, implantando “commodities ambientais”, cujos relatórios e consultas públicas são assinados por mais de 5000 profissionais multidisciplinares e centenas de comunidades ao longo de mais de uma década: por que não propusemos (ou melhor, pensamos) nessa Lei SISA antes?
Talvez porque não sejamos tão inteligentes quanto os idealizadores da Lei SISA a ponto de mobilizar o urubu. E aqui vale o poema “O urubu mobilizado”, de João Cabral de Melo Neto:
Durante as secas do sertão, o urubu
de urubu livre, passa a funcionário.
Ele nunca retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
ele, que no civil que o morto claro.
Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e secretário,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
Com que age, embora em posto subalterno:
ele, um convicto profissional liberal.
Notas:
[1] Lei SISA do ACRE: http://www.observatorioeco.com.br/wp-content/uploads/up/2010/10/lei-do-acre-para-serviaos-ambientais.pdf
[2]Pagamento por “Serviços Ambientais” e a flexibilização do Código Florestal para um Capitalismo “Verde” . Realização: Terra de Direitos. Agosto/2011:
[3] Declaração final da Cúpula dos Povos na Rio+20 – http://cupuladospovos.org.br/2012/06/declaracao-final-da-cupula-dos-povos-na-rio20-2/
[4]Uma análise crítica da economia verde e da natureza jurídica dos créditos ambientais. http://port.pravda.ru/science/31-08-2012/33635-analise_economia-0/
[5]Acre participa da Conferência de Mudanças Climáticas em Cancún, no México.10 de dezembro de 2010.
[6]O Comércio de Carbono: Como funciona e por que é controvertido. July 3/2012. Ong FERN: http://www.fern.org/pt-br/comerciodecarbano
Leia mais:
El Khalili, Amyra. Lei de pagamento por serviços ambientais do Acre beneficia Mercado Financeiro.
El Khalili, Amyra. Pós Rio+20: uma análise crítica da economia verde e da natureza jurídica dos créditos ambientais.
http://port.pravda.ru/science/31-08-2012/33635-analise_economia-0/
Soffiati, Arthur. Lei de Pagamento por Serviços Ambientais do Acre joga produtor e produto no mesmo saco.
Gibbon, Virgílio Horácio Samuel. Mira do fogo amigo erra ao criticar Lei de Pagamentos por Serviços Ambientais do Acre.
Carta de 30 entidades critica “governo da floresta” por mercantilização da natureza http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog/2011/10/11/carta-de-30-entidades-critica-governo-da-floresta-por-mercantilizacao-da-natureza/
“Economia verde” não a ver com conservação e uso sustentável, diz advogada.
Amyra El Khalili* é economista paulista, autora do e-book “Commodities Ambientais em Missão de Paz: Novo Modelo Econômico para a América Latina e o Caribe”. São Paulo: Nova Consciência, 2009. 271 p. Acesse gratuitamente www.amyra.lachatre.org.br .
Arthur Soffiati** é doutor em História Social com concentração em História Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor aposentado da Universidade Federal Fluminense, integra o Núcleo de Estudos Socioambientais da mesma universidade. Publicou dez livros, além de vários capítulos de livros, de artigos em revistas especializadas e de artigos jornalísticos semanais.
Foto: ciflorestas.com.br
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