O preço in natura
- Publicado em Terça, 04 Setembro 2012 14:32 fonte Vitae Civilis
Embora controversos, métodos de valoração ambiental estão no cerne da crítica à lógica econômica convencional. No Brasil, esse conhecimento pode ser melhor utilizado para fundamentar projetos de PSA
Este é o primeiro de uma série de quatro textos a serem publicados quinzenalmente sobre aspectos relativos ao pagamento por serviços ambientais (PSA). O mecanismo, criado na década de 90, compreende diversos incentivos, sobretudo econômicos, voltados à conservação e restauração de funções e bens de ecossistemas naturais, cujo funcionamento gera inúmeros benefícios, também chamados de serviços. São exemplos a regulação climática, a captura de carbono, a nutrição do solo, entre outros.
Em todas as etapas, embora o Instituto Vitae Civilis deva compartilhar algumas convicções oriundas da experiência de trabalho, o principal objetivo é incitar a reflexão franca e aberta, sem pretensões demasiadamente técnicas. Idealmente, queremos ajudar a subsidiar debates informados e a estimular a aprendizagem colaborativa sobre PSA.
Para intelocutores mais sensíveis, o uso da expressão “métodos de valoração ambiental” pode compreensivelmente causar desassossego. A mera conjectura de que aos recursos naturais corresponderia um determinado valor monetário sugere a submissão a uma ótica segundo a qual o dinheiro é a única medida. Por conseguinte, importa aquilo que tem preço e quem por ele pode pagar.
A ironia é que, estudadas as origens e o contexto no qual se apoiam, esses métodos têm como motivação primeira corrigir a lógica de mercado e não intensificá-la. Essa espécie de engenharia econômica dedicada a reequilibrar o sistema em benefício da sustentabilidade ambiental é o tema deste artigo.
A valoração ambiental é componente de um dos mais importante diagnósticos da sustentabilidade em todos os campos: o de que o sistema econômico equivocadamente supõe-se alheio ao sistema natural. Embora apenas o bom senso seja suficiente para reconhecer que a natureza tem um papel fundamental em todas as atividades produtivas e na geração de bem-estar, essa valorosa correlação não consta do pensamento econômico dominante, muito menos da prática cotidiana.
Isso acontece porque grande parte dos recursos naturais se encaixa na categoria de bens públicos, cujo usufruto não é exclusivo. Os serviços ambientais, por sua vez, têm a intrigante característica de prover benefícios difusos. Se a floresta amazônica desempenha função primordial na regulação das chuvas em todo o País, quantos de nós se beneficiam dela, ainda que indiretamente? E em que medida?
Tudo isso e muito mais escapa ao radar de um sistema desenhado para computar apenas propriedade, trabalho, compra e venda. O calcanhar de Aquiles é que, na hipótese de o serviço mencionado sofrer graves abalos, os impactos, inclusive econômicos, seriam brutais e concretos. Em outras palavras, a economia falha em contabilizar algo que é inexoravelmente de sua alçada.
A consequência de tal lacuna é a ineficiência no uso dos recursos. E aqui se estabelece que, qualquer que seja a opinião sobre abordagens econômicas aplicadas à sustentabilidade, dificilmente se discute que essa lógica tem influência determinante sobre os comportamentos.
Em seu Manual Para Valoração Econômica de Recursos Ambientais, o economista Ronaldo Seroa da Motta lembra que o raciocínio mais básico sobre custo-benefício está na raiz da tomada de decisão tanto de empresas quanto de famílias e governos. Todos nós fazemos escolhas com base em custos ou investimentos (não necessariamente monetários) versus o prazer ou benefício esperado como resultante. Quando esses dois elementos não são tangíveis para os indivíduos, a tendência é a sobre-exploração, descrita pelo ecologista Garrett Hartin como “a tragédia dos comuns”.
Outro lado nefasto da mesma dinâmica é a desigualdade. Tem-se o quadro em que alguns agentes se beneficiam sobremaneira de serviços e recursos naturais sem pagar nada por isso, enquanto outros suportam mais intensamente os prejuízos de eventual degradação sem possibilidade de compensação. É o que o palavreado econômico chama de “externalidade”.
O obstáculo mais evidente para corrigir essa falha é que preços são dados pelo mercado. Como atribuir valor econômico àqueles bens e serviços que não são comercializados? A resposta da valoração ambiental é recorrer a uma estimativa com base em mercados adjacentes ou fictícios.
Pode-se estimar o valor, por exemplo, calculando o quanto determinado dano ambiental afetaria a produtividade de bens e serviços que já estão no mercado. Ou, ainda, o quanto o serviço ambiental em pleno vigor contribui para essa produtividade. Já se usou como referência a valorização ou depreciação do preço de imóveis conforme variáveis ambientais, como áreas arborizadas nos arredores ou poluição sonora. O custo de viagem dos turistas que se deslocam para destinos ecológicos também é um parâmetro útil, assim como o custo efetivo de recuperar áreas naturais, entre outras possibilidades.
Um dos métodos mais antigos, o de valoração contingente, consiste em consultar o público sobre disposição a pagar e disposição a receber em um mercado hipotético. Grosso modo, pergunta-se: qual o valor máximo que as pessoas pagariam para preservar determinada área ou recurso natural? E qual o valor mínimo que aceitariam receber pelo dano ou perda?
Todos esses parâmetros são usados há décadas em diferentes situações, como sentenças judiciais que determinam compensação financeira por danos ambientais ou para definição do valor de taxas e impostos, por exemplo. A escolha do método mais adequado, ou da combinação de métodos, varia caso a caso. Mais importante é reconhecer que nenhum deles tem a pretensão de estabelecer qual é o preço da natureza.
A impossibilidade de apontar um valor inequívoco está plenamente reconhecida na literatura. Primeiro porque, por melhor que seja a estimativa, na ausência de um mercado real, sempre se compreende algum nível de arbitrariedade. Também porque a microeconomia do bem-estar (arcabouço teórico em que se insere a valoração ambiental) reconhece que o valor tem múltiplas facetas. Pode se revelar no uso que se faz da natureza, direto ou indireto, mas também na expectativa de usos futuros – por exemplo: deseja-se proteger a biodiversidade porque entre seus ativos pode estar a cura do câncer. Também atribuímos valor à natureza pela existência pura e simples, desprovida de utilidade. Um exemplo recorrente é a adesão a campanhas de proteção a animais – como o urso panda – por parte de quem não se beneficia pessoalmente ou sequer terá a chance de encontrar um desses animais ao longo da vida.
O intuito declarado da valoração ambiental é inferir a variação no bem-estar das pessoas conforme mudanças na disponibilidade de bens e serviços ambientais. Seu propósito é servir apenas como referência para uma tomada de decisão informada e, uma vez aplicada em um sistema, ajudar a corrigir as distorções de que tratamos anteriormente.
Se o leitor ainda se pergunta por que a tal referência precisa ser expressa em termos monetários, recorremos mais uma vez a Seroa da Motta, em sua explanação sobre custo-benefício. Tendo em vista que as limitações orçamentárias impõem escolhas, um gestor público que se vale de método de valoração ambiental terá uma base mais sólida para avaliar se os benefícios de determinada política ou programa compensam os custos. A análise só estará completa se for possível contrapôr o projeto a outras possibilidades concorrentes. É a unidade monetária que permite comparação.
É também no universo das políticas públicas que o pagamento por serviços ambientais (PSA) encontra maior aplicação no Brasil e no mundo. Assim o mecanismo não gera propriamente um mercado, mas um instrumento de gestão ambiental do território. A valoração ambiental pode servir tanto para justificar e formular o projeto, quanto para determinar o valor do benefício a ser pago aos provedores do serviço ambiental. Registre-se que o pagamento em dinheiro não é a única, tampouco necessariamente a melhor contrapartida para provedores de serviço ambiental. Sobre isso falaremos futuramente.
Na prática, o que se observa é que os programas de PSA no Brasil costumam fazer uso de métodos simples, como o custo-oportunidade de proprietários rurais. O pagamento oferecido pelo poder público deve, então, compensar o ganho que o proprietário teria se destinasse a área a ser preservada para outra atividade produtiva. Muito comum também é balizar o benefício pelo custo de restauração, com base nos insumos necessários (mudas, cercas, ferramentas etc.). Não menos frequente é a situação em que não se aplica método algum. Paga-se o valor que o governo e eventuais parceiros têm disponível.
Isso não é necessariamente ruim. A publicação Pagamento por Serviços Ambientais na Mata Atlântica: Desafios e Lições Aprendidas (2011, diversos autores) adverte que a valoração ambiental não deve ser tão complexa a ponto de se tornar um obstáculo para o PSA. Em última análise, o valor adequado é aquele que satisfaz ambas as partes (pagador e provedor) e que realiza o objetivo ambiental, estimulando comportamentos desejáveis.
Entretanto, entende-se que a aplicação de métodos mais refinados de valoração poderia aumentar o poder de convencimento dos proponentes, frente a resistências políticas que frequentemente se impõem. Foi o que fez Nova York, já nos anos 1990, quando estudos demonstraram que recuperar florestas ao redor de nascentes e margens de rios ao custo de US$ 2 bilhões era muitas mais sensato que investir em um sistema de tratamento de água por US$ 7 bilhões, cujos custos operacionais anuais seriam da ordem de US$ 300 milhões.
No Brasil, um estudo do Ministério do Meio Ambiente demonstrou que 38,4% das usinas hidrelétricas ficam a jusante de áreas protegidas. Essas áreas contribuem para o provimento de água e para contenção da carga sedimentária dos rios. Considerando que o acúmulo de sedimentos nas represas é um dos principais fatores de custo para esses empreendimentos, o estudo fortalece, senão a hipótese de pagamento de serviços ambientais por parte das usinas, ao menos a manutenção ou criação de novas áreas protegidas. De toda sorte, faz sentido para um ambientalista tanto quanto para um engenheiro barrageiro.
Para ampliar as possibilidades dos métodos de valoração ambiental no contexto de PSA é fundamental que gestores e técnicos do serviço público tenham acesso à capacitação. Atualmente, esses conhecimentos são pouco difundidos no País. Ademais, o uso de técnicas adequadas também esbarra na falta de informações necessárias sobre a relação entre uso da terra e serviços ambientais, bem como outros dados ecológicos. O cenário será tão mais promissor quanto maior for o conhecimento científico sobre a ecologia do território brasileiro.